E assim, num piscar de olhos, o São Paulo de Fernando Diniz é líder do Campeonato Brasileiro. Líder líder mesmo. Por pontos ganhos e perdidos. Segundo melhor ataque, melhor defesa, maior saldo de gols. Time que menos perdeu. Único mandante invicto – e com o direito de enfrentar todos os adversários diretos pelo título no Morumbi no segundo turno.
Simplesmente não há como não colocar mais o São Paulo como um dos fortes candidatos a título no Brasileirão. “Ah, mas não é um time confiável”, dirão alguns. Eu mesmo sempre fiquei com essa pulga atrás da orelha. Mas essa é uma pergunta fácil de ser rebatida com outra: quem é confiável? E a resposta é simples. Ninguém. O São Paulo pode até não ser “confiável”. Só que é um time não-confiável que lidera o campeonato e se, não bobear contra Sport e Botafogo, terá pelo menos cinco pontos de frente na quarta-feira.
Quanta coisa aconteceu ao longo do ano! Fernando Diniz apanhou demais. Não é exclusividade dele, mas com ele há um tom acima. Há algo na figura de Diniz que incomoda, que desafia o status quo, que é uma espécie de enfrentamento à maneira tradicional de se ver futebol no Brasil. A filosofia de jogo por cima da vitória a qualquer custo. Sentir o jogo como uma forma de expressão. O meio tão importante quanto o fim. Diniz representa uma cultura diferente. E por isso, muito mais do que por qualidades ou defeitos como técnico, gera tanta reação. E ele tem qualidades e defeitos (todos tem). Tudo isso ficou bem exposto ao longo de 2020, como veremos abaixo.
Este post trata de mostrar as mutações sofridas pelo São Paulo ao longo do ano e identificar alguns momentos-chave que resultaram na atual liderança do campeonato. Ele não seria possível sem a ajuda de dois grandes caras, colegas de UOL e de jornalismo por tantos anos. Um é Giancarlo Giampiero, editor do UOL Esporte, que teve a ideia do post e fez os campinhos abaixo para ilustrar os vários São Paulos de Diniz.
O outro, Arnaldo Ribeiro, dispensa apresentações, é um enorme conhecedor de futebol e do São Paulo Futebol Clube. Eu e Arnaldo temos muitas visões parecidas sobre a vida, mas algumas visões diferentes do jogo, sobre as razões e catalisadores para as mudanças do São Paulo ao longo do ano. E também sobre o próprio trabalho de Diniz. Este post vai mostrar democraticamente os dois lados. Somos, por assim dizer, co-autores.
O SÃO PAULO DO INÍCIO E O ATUAL
Tudo começa 14 meses atrás, naquele 0 a 0 com o Flamengo, no Maracanã. A defesa que entra em campo é idêntica à que jogou contra o Goiás, anteontem: Volpi, Juanfran, Bruno Alves, Arboleda e Reinaldo, com Luan de primeiro volante. Mas essa formação deu muitas voltas até chegarmos ao mesmo lugar, mais de um ano depois. Do meio para frente, o time tinha Daniel Alves, Hernanes, Tche Tchê, Antony e Pablo.
Hoje, só Daniel Alves continua. Os outros titulares nesta fase, a melhor do time com Diniz, são Igor Gomes, Gabriel Sara, Brenner e Luciano.
Arnaldo: “A defesa que levou o São Paulo à liderança é a defesa que fez o jogo do Maracanã. Uma atuação que, para mim, foi exemplar e que ele (Diniz) considera que não teve a cara dele. O Flamengo não teve uma chance real de gol, aquele time do Jesus só não fez gol no Maracanã nessa partida aí”.
Eu digo que os nomes podem ser os mesmos, mas a forma como essa linha defensiva se comporta hoje é completamente diferente. Defende lá no alto, e não dentro da própria área, com sobras, enfim, com tudo aquilo que sempre vimos no Brasil. E, o principal, são jogadores que ganharam confiança para sair jogando – antes, não arriscavam e nem sabiam fazê-lo. O caso clássico é o de Bruno Alves. Ainda precisamos ver se a volta de Arboleda é definitiva.
De qualquer forma, como já frisei, o mundo girou algumas vezes antes de aquela mesma linha do jogo do Maracanã ser escalada contra o Goiás, como muito bem observou Arnaldo Ribeiro. Em 2019, dois meses depois do 0 a 0 com o Flamengo de Jesus, o São Paulo venceu o Inter no jogo que garantiu a presença na Libertadores-2020. Já não estavam Luan e Hernanes, entraram no time Igor Gomes e Vítor Bueno.
PRÉ-PANDEMIA
Chegamos a 2020, e o São Paulo abre o ano com uma vitória sobre o Água Santa, pelo Paulistão. Antony e Igor Gomes estavam com a seleção disputando o Pré-Olímpico. Já começava a busca por um substituto para Antony, e Helinho parecia o nome mais forte. Luan no meio era coisa do passado, e a ideia de Diniz era jogar com Daniel Alves e Tchê Tchê, os homens que vinham até a pequena área começar a fase ofensiva desde lá atrás.
Após dois empates sem gols nos clássicos contra Palmeiras e Corinthians e algumas vitórias, o time estava desenhado com a mesma linha de quatro atrás, Dani Alves e Tchê Tchê no meio e Pato como titular no ataque. No dia 6 de março, vem o primeiro grande revés da temporada: a fatídica derrota para o Binacional, no Peru, que complicava de cara as chances em um grupo difícil da Libertadores. Um jogo em que a história de Diniz no comando de clubes importantes foi resumida: domínio absoluto, um caminhão de chances perdidas e derrota por “azar”. Uma semana depois, no entanto, o time venceu a LDU por 3 a 0 no Morumbi (última vez com público) e, já com portões fechados, ganhou o clássico contra o Santos (time abaixo).
Após o jogo da LDU, Pato e Diniz trocaram elogios do nível “pai e filho”. Tudo parecia em paz e o São Paulo era o time mais “quente” do Brasil quando nossas vidas mudaram e o futebol parou. Durante a pandemia, publiquei uma longa entrevista com Diniz em que ele dizia que Pato era “um dos jogadores mais talentosos do mundo”. O amor acabaria logo.
VOLTA DO FUTEBOL
Foram quatro meses sem bola rolando. Quando o Paulistão foi retomado, o São Paulo perdeu para o Red Bull Bragantino, poupou jogadores contra o Guarani e aí veio o segundo grande tropeço. A derrota para o Mirassol, um time que havia sido completamente desfigurado na pandemia, dando adeus ao Paulista – que parecia ser o único título que realisticamente o São Paulo poderia ganhar no ano.
Arnaldo Ribeiro: “Para entender essa escalação: ela é quase idêntica à vitória sobre o Inter no Morumbi (2019), que marca a classificação para a Libertadores. Ele encontrou a formação que ele julgou ser ideal e procurou repetir durante 2020, com exceção do Antony, que foi negociado. Ele volta da pandemia preocupado simplesmente em encontrar um substituto e opta para jogar o Pablo no lugar do Antony. Assim que ele vai para o Paulista. Essa formação perde do Bragantino e do Mirassol.”
TCHAU PATO, OLÁ LUCIANO
Neste momento, estamos às vésperas do início do Brasileirão. Raí precisa segurar Diniz pela primeira vez, e o técnico tem duas semanas cheias para treinar o time e juntar os cacos. Nos dois primeiros jogos, 1 a 0 sobre o Fortaleza, de Rogério Ceni, e derrota por 2 a 1 para o Vasco, de Ramón, Alexandre Pato fica no banco. O técnico mantém a linha defensiva atrás, mas começa a buscar soluções diferentes na frente, olhando para Cotia.
Tenta Liziero, tenta Paulinho Bóia, começa a ter minutos Gabriel Sara, avança Daniel Alves mais pela direita. Vem, então, uma ruptura. Uma certa limpeza do elenco, com as saídas dos insatisfeitos Pato, Anderson Martins e Éverton – este foi trocado por Luciano com o Grêmio, uma transação que gerou muitas críticas. O terceiro jogo é contra o Bahia, e Luciano faz o gol de empate aos 40min do segundo tempo – ele havia chegado dois dias antes ao clube e entrado no intervalo da partida.
Eu digo que a troca de Luciano por Éverton foi absolutamente fundamental e o crédito precisa ser dado ao técnico. O time com Pato e Pablo sofria para fazer gols, e Diniz foi buscar uma solução. Funcionou. Méritos a quem tem méritos. De qualquer forma, as críticas já eram enormes e, como expressei aqui no blog, passavam do limite do futebolístico.
Fala, Arnaldo: “Ele cairia se perdesse do Bahia! Luciano salvou o Diniz e aquele resultado faz com que ele decida reformular a equipe de forma bem incisiva. Ele vai com outros zagueiros, Sara no meio e Luciano como titular absoluto, numa formação que privilegiava a técnica e a saída de bola. Entram zagueiros hábeis, sobretudo o Léo Pelé, que emulava o Alaba no Bayern, e a preocupação do Diniz é formar um time técnico, em que todos pudessem jogar e sair jogando.”
O time acima é o da quarta rodada, vitória por 1 a 0 sobre o Sport – vieram depois vitórias contra Athlético e Corinthians, que deram oxigênio a Fernando Diniz no cargo. Com as entradas de Diego Costa e Léo Pelé na zaga, Diniz manda o recado. Iria até o fim com suas convicções e mandaria a campo um time capaz de sair jogando com fluidez. O jogo marca também a primeira partida de Gabriel Sara como titular.
A série seria quebrada naquele polêmico 3 a 0 contra o Atlético-MG, em jogo que o São Paulo dominava e teve um gol equivocadamente anulado pelo VAR ainda com 0 x 0 no placar. À essa altura, o time já não tinha Daniel Alves, que havia fraturado o braço, e ficou sem seu líder justamente na volta da Libertadores. Nos sete jogos sem ele, o time ganhou duas, empatou três e perdeu duas. Um dos empates foi contra o River Plate e uma das derrotas foi o 4 a 2 para a LDU – jogos que decretaram a segunda eliminação na temporada.
Uma sequência de sete partidas sem vitórias, gols sofridos nas criticadas “saidinhas de bola do Diniz” (falei sobre isso no blog na época), um empate contra o Coritiba e o técnico voltava a ficar por um fio. Parecia que realmente não haveria como segurar. O experimento com os zagueiros mais técnicos havia melhorado a qualidade com a bola, mas o time sofreu gols em 10 jogos consecutivos.
Aqui, meu amigo Arnaldo sobe a crítica: “Aquela formação toda técnica se mostrou completamente frágil na competição mata-mata que tinha virado a Libertadores para o São Paulo. O time toma muitos gols sempre e o jogo aéreo é um problema. O empate contra o Coritiba foi horrível. E aí tem o que eu julgo ter sido uma espécie de intervenção, não foi convicção dele. Para mim, um dos grandes problemas do Diniz é demorar para reagir ao óbvio, sobre tudo no aspecto defensivo, do desarme, da destruição. Ele coloca no time o Bruno Alves, na zaga, enfim coloca um volante no time, o Luan, e troca o Pablo pelo Brenner, o único bom finalizador. A partir do jogo seguinte, ele encontra a base da formação atual”.
LUAN E BRENNER
O jogo da mudança é este acima, 3 a 0 sobre o Atlético-GO em 7 de outubro, quebrando um jejum de um mês sem vitórias. Luciano estava suspenso, por isso jogou Vítor Bueno. Bruno Alves voltou ao time no lugar de Léo Pelé, Luan entrou no lugar de Tchê Tchê e Brenner virou titular fazendo logo dois gols – não parou mais depois disso.
Não sei se houvesse intervenção, convencimento ou o que rolou ali. Pelo que conheço de Fernando Diniz, ele não teria aceitado uma ordem autoritária vinda de cima (“escale assim ou vá embora”). Teria pego o chapéu e saído. Mas, também pelo que conheço dele, não haveria problema algum em dialogar com os superiores e ser, digamos, persuadido a tentar algo diferente.
Brenner entrou no time ao longo da primeira partida do ano, lá contra o Água Santa, no Paulista (o primeiro dos campinhos acima). Um ano e meio atrás, quando foi emprestado ao Fluminense, o garoto chegou ao Rio falando o seguinte: “Trabalhar com o Fernando Diniz teve um peso muito grande na minha escolha. Poder atuar em um time ofensivo, futebol de verdade, bonito, que dá gosto de jogar. Procuro jogar com velocidade e intensidade, como o Diniz gosta.”
Ou seja, já havia uma conexão antiga entre eles e possivelmente Diniz estivesse esperando o melhor momento para jogar suas fichas no garoto. Importante ressaltar também que, além de Pablo e Tchê Tchê, outro jogador que vinha sendo muito criticado pela torcida era Gabriel Sara. O técnico insistiu com o garoto no time titular e hoje colhe os frutos da decisão.
No jogo seguinte, o São Paulo venceu no Allianz Parque pela primeira vez, 2 a 0 no Palmeiras. A seguir, veio uma dramática e crucial classificação na Copa do Brasil contra o Fortaleza, de Rogério Ceni. Mas veio também a terceira eliminação do ano, contra o Lanús na Copa Sul-Americana, tomando gols no apagar das luzes tanto na ida quanto na volta.
Há males que vêm para bem, e este pode ter sido o caso da Sul-Americana, deixando o calendário são-paulino menos estrangulado. Logo antes da eliminação, o São Paulo havia vencido o Flamengo por 4 a 1, em jogo que poderia ter ido para qualquer um dos lados (Volpi pegou dois pênaltis). Não seria a última vitória sobre o Flamengo no ano.
A SOMBRA DE CENI
A queda de Domenech Torrent e a contratação de Rogério Ceni pelo Flamengo parece que tiraram uma enorme e constante sombra que pairava sobre o São Paulo e o trabalho de Diniz. É ano eleitoral, e a impressão sempre foi que, quem quer que assumisse, teria como ato número um de governo a contratação de Ceni para voltar ao clube.
Ironicamente, Ceni e o São Paulo voltaram a se enfrentar na Copa do Brasil. E Diniz voltou a eliminar o maior ídolo da história do clube, com um 2 a 1 no Maracanã e os implacáveis 3 a 0 no Morumbi (escalação acima). Agora sim, o São Paulo finalmente havia se credenciado como candidato a tudo. Sem a sombra de Ceni (não só empregado, como duas vezes derrotado por Diniz), o treinador são-paulino parou de ter cada decisão e cada resultado questionados.
Sem muito barulho, ainda fez mais uma troca no time. Arboleda jogou bem contra o Bahia e recuperou a titularidade no lugar de Diego Costa na vitória sobre o Goiás, na quinta-feira.
Arnaldo conclui: “É o último ajuste, formando a antiga zaga com o Bruno Alves e o Luan protegendo. Diniz pôde fazer isso porque, com os atacantes e meias funcionando bem, ele se convenceu que não precisava todo mundo saindo jogando, atacando, para ser letal e fazer gols. Se ele se segurar mais atrás, o resto dá conta na frente. O São Paulo sempre teve um elenco muito bom e algumas soluções óbvias ele demorou a adotar, seja por convicção excessiva, teimosia, enfim. Ele não tem só méritos, ele teve respaldo esse tempo todo para voltar à mesma defesa que fez o primeiro jogo dele. Ele volta dez casas e teve que ser eliminado três vezes para enxergar o óbvio. Com esse elenco, a melhor forma de jogar é se defendendo com esses caras e atacando com os caras que foram entrando no time.”
Eu vejo de uma forma um pouco diferente. Essa linha defensiva só tem os mesmos nomes de um ano e pouco atrás. São jogadores diferentes, que hoje fazem coisas que não faziam. Talvez fosse necessário que ficassem, sim, fora do time para aprender mais sobre o sistema e uma nova forma de jogar bola. Talvez fosse necessário um outro tipo de jogo a partir da defesa, mais arriscado, para que gente como Gabriel Sara ganhasse confiança e que para caras como Luciano e Brenner fossem mais vezes acionados.
Diniz pode até ser visto por muitos como alguém que atrapalha mais que ajuda na fase defensiva. Mas não é possível tirar os méritos dele por tudo o que o time faz com a bola e pelas apostas em Luciano, Sara e Brenner.
Quem chegou até o fim deste longuíssimo post terá reparado na enorme quantidade de mutações que o time sofreu ao longo de 2020. Para um cara taxado de “teimoso”, “convicto”, “cabeça dura”, sempre de forma negativa, até que Diniz mudou demais o São Paulo, não é verdade? Talvez seja mais maleável do que pareça. Ele também, como todos nós, aliás, passa por uma curva de aprendizado.
Este não é um post sobre um time campeão. É um post sobre um time que chegou à liderança do Brasileiro de forma surpreendente. Ainda faltam 16 jogos para o São Paulo, tem eleição no meio do caminho, o clube não precisou enfrentar surto de Covid, é uma estrada muito, muito longa.
O que sabemos com certeza é que o São Paulo e seu técnico não têm medo de se transformar. O que não sabemos é até onde chegarão.
UOL